Pedaços de Sonho (1985)

Primeira obra publicada por João Prado, reúne alguns poemas que ao longo dos anos se tornaram muito conhecidos (e requisitados) nos recitais em que o poeta se apresenta. 
          São textos fortemente marcados pela oralidade, nos quais o poeta apresenta-se como um fazedor de recados, que nos grita em rosto que é preciso ter esperança. Todo esse conteúdo é expresso em versos livres e sem rima, bem à maneira da tradição modernista.
          Edição do autor, completamente esgotada.
          Capa: Jerônimo Prado.


SE EU PUDESSE 
Se eu pudesse fazer
essa gente que chora,
sorrir.
Se eu pudesse fazer
essa moça que vive a chorar
na sacada, cantar.
Se eu pudesse ajudar
o mendigo que vive
na porta da igreja
à pedir.
Se eu pudesse fazer
o flamengo ganhar,
eu faria.
Se eu pudesse escolher
um alguém prá me amar.
aMaria.
Se eu pudesse fazer
prá Maria esquecer
outro amor,
Se eu pudesse buscar
uma estrela do alto
e lhe dar.
Se eu pudesse dizer
para alguém que o barco levou
que eu vi outro alguém
que ficou no cais a chorar
sobre a rosa,
a lembrança que até
já murchou
e deixou a saudade
florir no lugar.
Se eu pudesse gritar
que a guerra acabou,
que começou outra guerra
de flores e de samba.
Se eu pudesse gritar
que o homem de guerras
não é mais de guerra;
é o moleque bamba
que sai na avenida
arrancando aplausos
prá escola de samba.
Se eu pudesse gritar
que a guerra acabou,
que o homem de guerras
não é mais de guerras
nem sabe matar
Faz versos de amor,
Já sente saudades,
já sabe chorar.
Se eu pudesse voltar
a meus tempos de infância,
à correr pelos campos
sem fugir de ninguém,
deslizar no escorrego,
descer sem saber
que na vida descer
é vergonha também.
Se eu pudesse voltar
a meus tempos de infância,
do palhaço feliz,
da figura encantada;
sem saber
que o engraçado palhaço
da vida,
é também um palhaço
da vida engraçada.
Se eu pudesse voltar,
ser de novo criança,
o menino soldado
a brincar de quartel
Sem saber que ma is tarde
a ilusão findaria
e eu seria também
um estranho noel.
Se eu pudesse voltar
e juntar-me aos moleques
gritar: "PAU QUEIMADO!"
pro negro passando
com a enxada nas costas;
e com os moleques fugir.
Somente pro negro
zangar-se co’a gente,
prá gente sorrir.
Se eu pudesse voltar,
a correr pelas ruas
atrás de pipoca,
e o dinheiro não dá;
e eu voltar pela rua,
sem pipoca, a chorar.
Se eu pudesse ter asas,
voar pelo mundo.
Diria a quem chora
que a festa já vem.
E levaria um alguém
prá quem chora,
e uma rosa,
e uma estrela também.
Pois quem tem uma rosa no mundo
uma estrela
e um alguém para amar,
acredito que nada mais queira,
nada mais é preciso ganhar.
Se eu pudesse gritar
que a canção que venceu.
foi a canção realmente
mais linda.
E dizer para quem
o poeta morreu,
que o amor do poeta
não morre, não finda;
é feito esse vinho do porto,
é gostoso,
e é mais gostoso
mais velho ainda.
Se eu pudesse o ódio arrancar
do coração dessa gente que odeia
e o amor implantar.
Se eu pudesse
eu iria buscar
o alguém para alguém
que vive a esperar.
Se eu pudesse .
ninguém sofreria.
Não haveria o apito da barca
nem o adeus no cais haveria.
Se eu pudesse viver concebendo
que o mundo é uma festa,
e a vida encantada.
Que ninguém é infeliz,
que se há risos, mais nada.
Que é tempo de fada afinal.
Sem saber que não há
chapéuzinho vermelho,
e que todo mundo
quer ser lobo mau.
Se eu pudesse meu Deus!
Depois de uma briga,
Maria sorrindo,
me amando de novo
tão linda, tão pura,
com restos de briga
rolando na face,
sorrindo prá mim;
Eu pegaria essa lágrima quente,
essa gota de esplim,
prá por num anel.
para os outros saberem
que eu não fiz faculdade
de felicidade;
mas sou bacharel.
Se eu pudesse fazer
tanta coisa eu faria,
misturaria rosas e estrelas
e as rosas e estrelas
juntava Marias.
E depois que as misturasse
daria um doce
a quem as separasse.
Se eu pudesse ver
essa gente sorrindo,
com festa nos olhos
sabendo que a dor,
que o pranto passou.
Ah! se eu pudesse gritar
com Maria nos braços;
minha gente, meu mundo,
a guerra acabou.

Um comentário: